quinta-feira, 13 de março de 2014

Para além do mundo dos sonhos III

“Imagine que você foi dormir e teve um sonho que não terminava nunca. Como você saberia que era um sonho?”(Bennett).

Era uma daquelas velhinhas super simpáticas com quem volta e meia nos deparamos por aí. Daquelas que adoram conversar e contar um bom caso, e que trazem sempre na bolsa umas balas ou doces que compram dos meninos pobres na rua, para ajudá-los. Saltou do elevador e, logo à direita, ao lado do consultório dentário, estava a sala 512, com a plaquinha na porta, que dizia: “Doutor Fulano de tal - Psicólogo. Entre sem bater”. Ela entrou e, depois de conversar com a secretária, entrou no consultório. Fechou a porta e sentou-se já com um sorriso no rosto.
- Bem, o quê traz a senhora aqui?
- É que eu não consigo dormir, doutor.
- Alguma coisa está lhe preocupando?
- Sim, e muito.
- E a senhora pode me dizer o que é?
- O que me preocupa é que eu não durmo, doutor.
- É complicado e engraçado ao mesmo tempo - ele tinha a mania de arrastar a parte de trás da caneta na mesa enquanto falava, como se estivesse desenhando - A senhora está preocupada porque não dorme, e não dorme porque está preocupada.
- O senhor não entendeu - e ela então ofereceu uma bananada que tirou da bolsa e ele aceitou, mas deixou sobre a mesa – Já faz dois anos que eu não durmo nem de dia e nem de noite. Nem um só minuto.
- Mas a senhora não está com a cara e nem com o ânimo de quem não dorme há dois anos. Eu já fiquei dois dias sem dormir e tive até umas alucinações bem bizarras. Tem certeza do que está dizendo?
- Sim, doutor – e ela então tirou da bolsa e lhe entregou dois laudos médicos, um de uma junta de neurologistas que a haviam examinado e outro de um psiquiatra.
- Confesso que estou impressionado. Nunca vi nada igual em todos esses anos de consultório. Me conte então como isto aconteceu – e colocou os laudos em cima da mesa e, por cima deles, a bananada.
- Há dois anos e uns meses o meu único filho foi internado num hospital. Lá os médicos descobriram que ele tinha uma doença incurável e que não tinha muito tempo de vida.
- Hum...
- Então, já que ele ia morrer, eu quis ficar na cabeceira dele até o último instante e os médicos permitiram que eu ficasse na enfermaria dele. Eu rezava muito, mas todos os dias eu achava que ele ia morrer e eu não queria que ele morresse enquanto eu dormia, sem poder dar o último adeus a ele. Depois de uns dias os médicos começaram a estranhar que eu não dormia. Me deram então uns sedativos, mas mesmo assim eu não dormia. Até que um dia o meu filho veio a falecer. Desde então eu não dormi mais. Os neurologistas do próprio hospital me examinaram e depois me encaminharam para o psiquiatra, para que ele me receitasse uma medicação. Eu comprava caixas e mais caixas do remédio para dormir, mas o máximo que acontecia era eu sair grogue pela rua, como uma louca, sem rumo, até que um vizinho ou a polícia me encontrava e me levava para a minha casa. Então parei de usar o remédio e tenho vivido assim, como o senhor está vendo.
- Bem, e o quê faz a senhora acreditar que eu lhe possa ser útil?
- É que eu vi no anúncio do jornal que o senhor faz hipnose também, e então eu achei que não custava nada tentar.
- Certo. Pode ser que funcione, mas não lhe dou esperança alguma e nem será para hoje. Talvez numa das próximas sessões. Por hoje, vamos apenas conversar.
Iniciaram então uma conversa animada, que se estendeu por quase duas horas. Por fim, ela saiu, prometendo voltar na semana seguinte. Foi para casa pensando e estranhando o modo incomum daquele psicólogo falar pois, apenas conversando sobre coisas banais, deixou em sua mente uma forte convicção, quase uma ordem, para que ela dormisse. Ela sentiu que não conseguiria, mesmo que tentasse, desobedecer. Na manhã seguinte, abriu os olhos e sentia-se estranhamente feliz, com a sensação de que havia dormido, mas não sabia se apenas por uns minutos, uma hora ou dez. Era aniversário de dois anos da morte do seu filho. Arrumou-se e foi à floricultura comprar algumas flores para levar ao túmulo do filho, mas lembrou que havia deixado os laudos no consultório. Resolveu então passar lá primeiro e, depois, fazer o resto. Saltou do elevador no quinto andar e foi direto à sala do psicólogo, mas estranhou que a placa não estava mais na porta, e nem o tapete com a frase “Seja bem vindo”. Tentou abrir a porta, mas não conseguiu. Bateu umas três vezes sem sucesso. Entrou então no consultório dentário e perguntou à secretária, que lhe informou que não havia nenhum consultório psicológico na sala ao lado e que seria melhor ela se informar na portaria. Ela desceu e foi perguntar ao recepcionista. A resposta foi algo de tremendamente desconcertante: havia, realmente, o consultório de um psicólogo ali no quinto andar, o qual fora fechado dois anos antes por motivo de falecimento do dono, o psicólogo. Agora mesmo é que ela não sabia mais se estava desperta ou sonhando... Saiu pela rua e, já próximo à floricultura, foi abordada por um menino:
- Senhora, pode comprar umas bananadas para me ajudar?

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