terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Nota de agradecimento

Eu gostaria de registrar aqui a minha profunda gratidão e admiração pelos profissionais da equipe da Clínica da Família Maria Sebastiana de Oliveira, na Ilha do Governador, onde fui atendido recentemente. São eles:
- Doutora Ana Cláudia Carvalho;
- Doutor Hector Barrios;
- Enfermeira Liliane Caldas Barreto
- Kelly Dudley, diretora da Unidade.

Impressionou-me o enorme senso de profissionalismo, a dedicação, a boa vontade, a atenção e principalmente o carinho com que fui tratado lá. São, sem sombra de dúvida, pessoas que verdadeiramente honram a profissão que abraçaram.

Parabéns e obrigado por tudo!

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Difícil

"Difícil" é uma palavra entre milhares de outras dentro do dicionário. Num certo sentido, o dicionário é a sua jaula e a jaula para muitas outras. É a partir do instante em que você apreende o seu sentido e aprende a pensá-la e dizê-la, que ela adquire o seu maior poder de destruição, tornando tudo realmente difícil e doloroso, consumindo mais da sua energia do que o necessário e minando aos poucos, até demolir, a sua autoconfiança. Pense nisso.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Filosofando LII

Uma coisa é muito certa na vida: você vai sempre ter que saber o momento certo de saltar do trem. O problema é que nem sempre ele vai parar numa estação para que você desça, e então muitas vezes você terá que pular dele em movimento.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Filosofando LI

Não sei se você notou, ao longo dessa coisa doida que você chama de vida: quando você é criança, você se assusta e se encanta com o mundo; quando você é jovem, você o desafia e quando você é adulto, você apenas se conforma e acha que é assim que as coisas sempre são. O grande barato é quando você se aproxima da velhice, que é quando você, além de cagar e andar(muitas vezes literalmente), zomba do palhaço que você foi na infância, na adolescência e da idade adulta, sendo que na infância você foi muito mais sábio.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Ao vento I

É tanta coisa inútil que às vezes eu penso, que às vezes eu penso que é inútil pensar...

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Os Nanautas estão entre nós(parte VII)


Uma coisa é muito certa: quando os astros se reúnem no céu e resolvem conspirar para que algo aconteça, não há nada aqui embaixo no mundo dos mortais que possa impedir. Silver, também adepto do Cara-coroísmo e da Astrologia, sabia disso muito bem, e sabia perfeitamente que aquele era o seu momento. Conseguira facilmente o dinheiro para sua viagem de navio até New Orleans(tinha medo de viajar de avião desde que fora abduzido por alienígenas que o obrigaram a práticas inconfessáveis num biombo dentro de um Ovni). Tinha até o suficiente para se instalar confortavelmente em um bom hotel. Ocorre que os Federais estavam curiosos por saber quem era o abnegado médico que examinara um paciente a cada cinco minutos, vinte e quatro horas por dia, durante dez dias, sem tempo sequer para comer, dormir ou tomar banho, o que dava um total de dois mil, oitocentos e oitenta atestados médicos. Sentiu então que devia partir o mais rápido possível, mas só havia o luxuoso e caro transatlântico Eugenio “C” disponível no porto e o seu dinheiro daria apenas para a passagem de ida e um cheeseburguer com limonada a cada dois dias. Resolveu que seria de bom tom fazer então um pequeno investimento antes. E assim foi. Embarcou rapidamente naquele que era o orgulho da navegação mundial e ganhou o mar. A sorte parecia mesmo estar ao seu lado. Ali presentes estavam Don Corleone, Don Berlusconi, Marlon Brando, Don Vito Genovese, Raul Capitão, Castor de Andrade e o temido e sanguinário Tomaso Buscetta, entre outros chefes da Máfia, acompanhados de parentes, amigos e capangas, todos reunidos para um cruzeiro onde naturalmente iriam decidir sobre a viabilidade do jogo do Bicho nos EUA. Na quinta feira da segunda semana estava programado um grande show a bordo com Frank Sinatra, que cantaria o seu grande hit “That guy is me”(“Esse cara sou eu”), de autoria de Carlos “O Chacal”(para quem não sabe, Carlos era, além de pistoleiro, um grande compositor de músicas românticas), na época em que o mundo se perguntava perplexo quem havia matado Kennedy. Era tudo de que Silver precisava, pois já estava começando a ter alucinações devido a ficar tantos dias praticamente sem comer. Foi sem dúvida um espetáculo grandioso. Todos foram às lágrimas com sucessos como “I feel a hole in my heart”(Eu sinto um buraco no meu peito), “Let me fire again”(Deixe-me atirar de novo”), a imortal “That guy is me” e outras. Aproveitando-se do primeiro intervalo do show, Silver subiu no palco, pegou o microfone e começou um discurso que também emocionou a todos, tendo se eternizado até os dias atuais:
-”Senhoras e senhores passageiros, primeiramente uma boa noite. Desculpem interromper o descanso de sua viagem. Eu podia estar roubando, matando, espionando, delatando, me prostituindo, mas não. Eu venho humildemente oferecer a vocês estes belos produtos que eu tenho certeza tornarão a sua viagem ainda mais divertida”.
Então abriu uma das duas malas que estavam consigo e foi passando de mesa em mesa. Não terminou de percorrer o salão e já havia vendido tudo: 15 sub-metralhadoras, 12 pistolas calibre 45 com silenciador, 15 granadas, 6 rifles de longa distância com mira telescópica, 20 revólveres calibre 38, 6 metralhadoras ponto 30, 10 fuzis automáticos, 78 caixas de munição e 20 facas. As vendas foram um sucesso. Conseguira dinheiro para mudar para um camarim na primeira classe, fazer três refeições por dia, encher a cara de Whisky, comer uma piranha por noite e, se quisesse, poderia até contratar o Frank Sinatra para um show particular em sua cabine. Sentia-se orgulhoso de si mesmo e, uma noite, pegou uma lata de tinta, um pincel e deu um jeito de se pendurar na proa do navio e substituir o “Eugenio C” por “Eu o gênio A.C”. A viagem trancorreu normal até a Flórida, onde desembarcou, mas soube pelos jornais que o tal cruzeiro terminou em um intenso tiroteio que durou uma noite inteira, o que forçou as companhias de navegação a criarem a lei que proíbe o comércio de ambulantes a bordo dos transatlânticos, lei esta que vigora até hoje. Mas aquela letra “C” na chaminé do navio parecia prenunciar um encontro fatídico que se daria algum tempo depois...

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Os Nanautas estão entre nós(Parte VI)


 
Foi Sua Divina Graça Sri Kagayanda Maharishi, profundo conhecedor da natureza humana, quem afirmou um dia: “Todo homem é como um disco de vinil: tem um lado A, um lado B e um buraco no meio”. Buracos à parte, nas pessoas comuns estes dois lados quase que se confundem, mas é nos gênios que a diferença entre eles assume proporções assombrosas. Ayo Silver é um exemplo disso. Conta-se que o seu pai fora um feiticeiro haitiano que se refugiara no sul dos EUA, casando-se com uma senhora de reputação meio duvidosa, com quem tivera apenas um filho, dos muitos que pusera no mundo. Rapidamente tornou-se um bem sucedido empresário do ramo do prazer e da luxúria, vindo a falir algum tempo depois com o advento da Gripe espanhola, que dizimou quase todas as moças prestadoras de favores libidinosos no país e os clientes quase todos também. Com o pai, Ayo Silver aprendera todos os mistérios da macumba, da feitiçaria e do mundo empresarial, e o mundo se encarregaria naturalmente de lhe ensinar o restante, de forma que ele conseguiu acumular um invejável currículo que incluía roubo, estelionato, assalto a mão armada, tráfico de bebidas, pornografia infantil, agressão, desacato à autoridade, formação de quadrilha, tráfico de influência, corrupção de menores, contrabando de animais silvestres, suborno, corrupção ativa e passiva, extorsão, falsidade ideológica, atentado violento ao pudor, falsificação, desvio de verbas públicas, charlatanismo, bebedeira, arruaça e homicídio seguido de morte(este último item, aliás, gerou uma batalha jurídico-filosófica que se estendeu por vários anos, incendiando o meio acadêmico e resultando sem solução até os dias de hoje). O pouco tempo que passou na cadeia, isolado das más influências, foi suficiente para que ele desenvolvesse duas das mais revolucionárias técnicas de que se tem notícia: o Telégrafo espiritual, baseado num código que ele mesmo criou, análogo ao Código Morse, e que batizou de “Código Silver”. Era para ser executado com atabaques de macumba, que funcionavam como transmissores, a fim de tornar mais precisas as comunicações com o mundo espiritual. A partir de então foi que, qualquer um que desejasse enviar uma mensagem a um ente querido já falecido, teria apenas que escrever a tal mensagem em um papel e, mediante um pequeno pagamento, os ogãs se encarregariam de enviá-la através de seus tambores. O mundo prostrou-se diante de tal prodígio e a modernidade finalmente chegou aos centros de macumba pois, dali por diante, cada terreiro passaria a funcionar como uma Lan House espiritual. Mas uma outra invenção teve um impacto mais contundente ainda, repercutindo até mesmo na milenar China: a Acupuntura à distância, a qual ganhou enorme notoriedade no mundo inteiro, ficando mais conhecida no ocidente como Vudu. Seu princípio é muito antigo e bem simples: “O igual se comporta igualmente, e não diferentemente”(Imitágoras). Dito numa liguagem mais popular, "O pau que dá em Chico, dá em Francisco". A partir disto ele deduziu que, se um simples átomo se comporta como um sistema solar ou uma galáxia, então, com um simples boneco e algumas agulhas e sabendo onde enfiá-las, ele poderia curar ou matar alguém à distância. O próprio Ayo Silver viria a afirmar categoricamente que "qualquer país que tiver uns dez bons vuduzeiros não precisa de exército". Por conta desta afirmação, no ano seguinte a Convenção de Genebra incluiria o Vudu na lista de crimes de guerra espirituais. Foi talvez graças a esta invenção que ele jamais pode ser condenado em um tribunal, pois todos os juízes designados para julgá-lo ficaram afônicos e com os braços paralisados e, portanto, não tiveram condições de bater o martelo e dar a sentença. Assim, após horas de uma interminável reunião, a corte de New Orleans achou por bem esquecer tudo e ele foi deixado em liberdade, tendo apenas que realizar pequenos serviços comunitários, tipo assombrar crianças desobedientes que faziam birra na hora de comer.
Este era Ayo Silver, o Einstein do mundo espiritual, tio de A.C. Silver, com quem muito breve teria um encontro histórico...

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Filosofando L

O mundo é com certeza um lugar muito esquisito mesmo. Mas o quê é a humanidade senão um monte de gente esquisita tentando, através das eras, criar uma normalidade para tornar-se escravo da mesma, fazer dela um modo de vida e sabotá-la sempre que não estiver sob a mira dos outros olhares? Talvez esta seja a maior das esquisitices deste mundo...

sábado, 16 de agosto de 2014

Os Nanautas estão entre nós (Parte V)


Lar, doce lar! Era de fato maravilhosa a sensação de estar de volta ao lar, depois daquela louca aventura em que perdera uma parte do seu tronco ao ser atropelado por uma manada de bovinos na Índia, e que o deixara com o perfil para sempre assim meio atarracado, ter sido preso e torturado por bater carteiras em Nova Délhi e por fazer mal a duas vacas e, o mais sensacional, o fabuloso encontro com Sua Divina Graça, Sri Kagayanda Maharishi, o mestre que veio trazer luz ao mundo, desde que todos pagassem em dia as suas contas de energia e o primeiro homem a se declarar publicamente Etcéterossexual.  Não conseguiu controlar a emoção ao entrar de novo no porão da velha casa e contemplar ali o mesmo feixe de luz, resultante de um pequeníssimo buraco na parede, que um casal de Barbeiros fizera  a fim de fazerem sexo e que, no final, possibilitou que ele viesse a formular a sua revolucionária teoria dos Nanautas. Eram as eliminatórias da Copa de 70 e Silver ouvia a eletrizante partida Namíbia 5X4 Vietnam, no rádio a pilhas que ele achara naquela montanha de lixo que resultara de Woodstock e que resolvera levar para casa.  Antes mesmo que o Vietnam pudesse empatar, o rádio pifou e ele resolveu dar uns tapinhas daqueles que todo mundo dá quando um aparelho não está funcionando direito. Inexplicavelmente, o rádio voltou a funcionar, e ele pode ouvir o restante de Vietnam 8X7 Namíbia. Mas dentro de alguns minutos, o rádio ficara novamente mudo, e ele repetiu o procedimento: deu uns tapas no rádio e restabeleceu assim o seu funcionamento normal. Parou por alguns instantes para pensar e nem se deu conta de que já estava Namíbia 12X9 Vietnam, resultado final, e então teve um daqueles muito frequentes lampejos de genialidade: era perfeitamente plausível que um sistema qualquer(no caso, o rádio a pilhas), sob o impacto de um outro corpo(sua mão), sofresse um rearranjo sistêmico, passando assim a funcionar de uma forma totalmente inesperada ou voltando à sua configuração original. É o que todos nós fazemos, sem o sabermos, quando damos um tapa no telefone, no rádio ou em outra pessoa, e a humanidade já conhece e põe isto em prática de maneira instintiva desde tempos imemoriais. E ele não poderia estar mais correto. Daí começou, num trabalho frenético, a construir a sua Teoria Universal da Chacoalhada Sistêmica, que explicaria as diferenças no comportamento, seja de átomos ou de galáxias inteiras, após o choque com outros corpos. Em sua mente, estavam mais do que evidentes as causas do desaparecimento dos Dinossauros, das glaciações, do por quê uma mulher se apaixona após levar umas porradas, da fissão nuclear e dos traumas. Breuer e Freud estavam superados, assim como Darwin e Einstein. Definitivamente. Precisava demonstrar isso experimentalmente, e ninguém melhor do que Ayo Silver, o seu tio por parte da cunhada da sua mãe adotiva e o maior macumbeiro de New Orleans, para ajudá-lo nisso. Precisava urgentemente ir para New Orleans encontrar-se com o tio e resolveu que o modo mais prático de conseguí-lo seria vendendo uns atestados médicos para candidatos a empregos públicos, tarefa que executava de vez em quando, sempre que a situação apertava. Não havia nada de ilegal ou antiético nisso, já que um médico amigo seu, antes de ser internado numa clínica para doentes mentais, dera a ele de presente toda a coleção de "Medicina e Saúde", que o seu apetite por conhecimento o fizera devorar em pouco tempo. Achou que os métodos de diagnóstico tradicionais eram trabalhosos e desnecessariamente complicados e acabou por inventar um bem simples e extremamente prático, que se baseava na coloração da pele. Se a pele do paciente estivesse esverdeada, era infecção por bactérias; se estivesse amarelada, era verminose, e se estivesse acinzentada, era morte na certa. A coloração normal da pele significava apenas que o paciente teria que fazer um pequeno agrado ao médico(no caso, ele), a fim de confirmar sua normalidade. E assim foi. Era só uma questão de tempo, para estar desembarcando na terra dos ciclones e de "Little Horny" Johnson, conhecido também como "Seven Rhinos" Johnson, o célebre cantor de Blues que fizera um pacto com o Diabo, mas fornecera ao mesmo um endereço falso e fugira para não ter que pagar ao Cão o que prometera. E também não tardaria muito a encontrar-se com "Seven Rhinos" e desvendar assim todo o mistério em torno de sua suposta morte. Mas muito, muito mais ainda estava por acontecer...

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Homenagem póstuma a um amigo

A solidão e a má companhia fazem com que o tempo se arraste, como se fosse eterno. Todo mundo sabe disso.
Um certo autor, cujo nome não lembro, disse certa vez: "Em termos de pensar, eu posso dividir a humanidade em tres grupos: os que pensam grande, os que pensam profundo e aqueles para os quais o pensamento simplesmente lhes acontece, como pegar um resfriado, ser atingido por uma bala perdida e por aí vai". Se o tal autor estiver certo em suas afirmações, Sílvio Romero era um legítimo e admirável representante deste primeiro grupo, e eu tive o privilégio de conhecê-lo. Convivemos por muito pouco tempo, e o que sei dele são capítulos esparsos de uma história de grandes realizações e conquistas. Juntamente com um outro admirável Sílvio, o Santos, era um homem que acreditava no capitalismo, um mágico, um homem que fazia o mundo acontecer e que mostrava de quantas coisas gloriosas um homem é capaz, enquanto eu me perdia aqui com o meu umbigo, pensando o mundo e a humanidade. Era de uma ética que eu, do alto da minha montanha submersa(pois no fundo do mar também há montanhas e picos altíssimos), jamais imaginei encontrar em um capitalista.
Lembro com muita clareza do dia em que nos conhecemos. Estava eu espichado no meu quiosque preferido da praia, bebendo uma latinha, esperando dar onze horas, que é a hora em que o vento pontualmente começa a soprar desde o oceano e muda tudo como num passe de mágica, transformando uma mera paisagem em um quadro, uma obra prima. Olhei para o lado e vi aquele sujeito simpático tão enfeitado quanto um empresário do mundo brega e tive vontade de rir. Sua calça absurdamente branca, imaculada; seu blusão matematicamente engomado, seu cabelo que parecia ter recebido uma ordem de não sair, em hipótese alguma, do lugar. Usava um anel, um cordão e uma pulseira que pareciam ser de ouro, e que depois vim a saber que eram mesmo. Um daqueles óculos F1, original, que devia valer mais do que a minha roupa, meu smart e minha Sun Race juntas. Olhei a manchete estampada no jornal barato que estava em cima de sua mesa  e achei de puxar conversa com aquele "galã de subúrbio".  O resultado foram oito horas de um bate papo inesquecível, no qual falamos sobre arte, política, mulher, futebol, literatura, tecnologia, putaria, vida alheia, cinema e estava ali um cara que o meu coração eslavo, socialista e cético  não esqueceria jamais. E acabamos fazendo destes encontros um hábito que fazíamos questão de conservar.
É uma sensação perfeitamente normal, quando não vemos um amigo há muito tempo,  mas sabemos que ele está vivo. O reencontro é só uma questão de tempo. Vivi estes seis meses com este sentimento mas, há poucos dias, soube que ele sofrera um acidente, vindo a falecer em fins de fevereiro. Não o via desde antes do Natal. É difícil saber que não vamos ter mais a companhia de um amigo. Ele não era da Ilha, mas era um apaixonado por este lugar. Seu plano louco de fazer um cinturão de cem metros de aterro em torno da Ilha e uma rodovia circundando-a toda, mais um hotel internacional, um enorme shopping center e um polo de gastronomia me pareciam absurdos mas, só de olhar nos olhos dele e ouvi-lo falar, qualquer um se convenceria de que era possível. E bem breve, ele trouxe à nossa mesa os políticos que poderiam tornar viável este projeto. Ele amava as viagens, as boas mulheres, a boa música e a boa conversa. Era um bon vivant. Fora diretor de pelo menos tres grandes multinacionais no Brasil e um exímio jogador de pôquer. Abandonou as mesas de jogo quando, após ganhar um carro zero quilômetro numa aposta, percebeu que também poderia ter perdido tudo e ficado na miséria, juntamente com a mulher e a filha. Um dia ele me propôs de me lançar como candidato na política, só desistindo da ideia após eu lhe apresentar todas as razões comunicacionais pelas quais a minha candidatura não emplacaria de forma alguma, a começar pelo meu sobrenome. Se ele ainda estivesse aqui entre nós, com certeza estaria realizando coisas, enquanto eu, aqui pensando, fico me perguntando por quê certas pessoas não vivem para sempre. Eu poderia ter aprendido mais, poderia ter desfrutado mais desta amizade que fazia valer cada minuto de nossos encontros. Onde quer que esteja, meu amigo, receba o meu carinho e a minha eterna admiração.

sábado, 9 de agosto de 2014

Muito estranho

Muito estranho mesmo, este mundo, em que até mesmo os músicos têm que dançar conforme a música. E o pior: não são eles que fazem a música.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

A Copa de 2014 e o fim do “Glam-Soccer”... Será?


Penso que tudo começou quando alguém resolveu chamar o nosso bom futebol de “Futebol arte”. A partir de então, qualquer jogador medíocre com lampejos de genialidade era logo considerado um artista, com direito ao glamour que rodeia o mundo dos que Edgar Morin chamou “olimpianos”. Não que não exista arte na nossa maneira de jogar futebol, mas o rótulo decididamente não fez bem aos nossos jogadores, cuja vaidade tupiniquim fez com que passassem desde então a desejar da arte quase que somente a luz dos refletores e dos flashes, deixando de lado o empenho, a dedicação e o treino constante como algo de importância secundária. Com o mundo aos pés do futebol arte, era natural que este logo se tornasse a galinha dos ovos de ouro de uma nova era, alimentada por uma imprensa caolha e empresários de olhos bem abertos, em que parecer é mais importante do que ser. Daí vieram rapidamente as chuteiras coloridas, os cabelos mais esdrúxulos possíveis e as ridículas danças ensaiadas para comemorar gols que quase sempre beiravam o acaso. Nos quarenta anos anteriores a esta infeliz ideia, o Brasil conquistou tres títulos mundiais, com um futebol via de regra excelente, bem disputado, sério. Nos quarenta anos de “Glam-soccer”, apenas dois títulos e participações que foram de sofríveis a medianas com, para não ser injusto, apenas uma exceção. Por quê chamei de “Glam-soccer” essa coisa feia, barata e por quê não dizer afeminada, que se tornou o nosso futebol? Pelo início dos anos setenta, surgiu na cena do Rock mundial uma vertente a qual chamaram “Glam-rock”, uma mistura indecente de egocentrismo, marketing, posing, muitos brilhos, plumas e lantejoulas, e muito pouca coisa que se pudesse reconhecer como sendo Rock. Felizmente, este bebê de Rosemary parece ter sido devidamente dedetizado por Ozzy Osbourne e vários outros, para os quais o Rock era coisa séria. Penso que, em vista de tantas afinidades, o termo“Glam-soccer” cai como uma luva para esta caricatura de futebol que temos apresentado ao longo desses mais de 40 anos. Vi na derrota para a Alemanha por 7x1 uma grande esperança de que tudo venha a mudar e que possamos enfim retomar os trilhos do nosso bom futebol, e desejei na derrota para a Holanda por 3x0 que esta fosse a última pá de terra em cima de um cadáver que na minha opinião já fedia. Muitos tentarão exumá-lo, pois como diz o cancioneiro: “Nego quebra a dentadura, mas não larga a rapadura”. Explicar o apagão que deu na nossa seleção? Qualquer hora dessas eu explico.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Não vai ter vaia

Li em alguma parte que, pelo protocolo da FIFA, o troféu da Copa do Mundo deve ser entregue aos vencedores pelo chefe(no nosso caso, não é “chefa” pelo mesmo motivo que não é“presidenta”)de estado do país sede. Supondo que a minha fonte esteja correta, então desta vez parece que estamos diante de um impasse. Eu explico: há mais ou menos uma semana, por ocasião da abertura da Copa do mundo 2014, estranhei(ou não) a presidente do Brasil não ter feito um discurso. A razão disto certamente era evitar o que não podia ser evitado e que veio logo depois. A emissora que transmitia o evento não teve tempo de cortar o áudio e o resultado foi que aproximadamente três bilhões de pessoas ao redor do planeta puderam ouvir o que a mídia chamou eufemisticamente de “vaia”. O que eu conheço como vaia é aquele tradicional “Úúúúúúú” e meu ouvido de músico várias vezes vaiado reconheceu de pronto que a plateia estava mandando a nossa chefe de estado realizar uma prática nada convencional, pelo menos no sentido lato, para quem está no poder. Uma certa figura espúria que, tal qual os ratos no esgoto, tem habitado os bastidores do poder, afirmou que aqueles que estavam ali não representavam o povo. Em primeiro lugar, o povo foi sistematicamente excluído desta festividade pelo simples fato de que a geral de todos os estádios foi suprimida nos projetos de reforma orientados pelo “Padrão FIFA”. Será que se comportariam de modo diferente, caso estas alterações não tivessem sido feitas? Não sei. E por último, se aqueles que “vaiaram” a presidente não representam o povo, ela muito menos. Mais uma coisa a se considerar: ao contrário do que certamente se passa no pensamento da figura citada acima, o que se passou ali não foi expressão do ódio de uma suposta elite para com a “classe oprimida” ou o “governo do povo”, mas de algo mais profundo e nem tão óbvio assim. Em vez de pensarmos em termos de classe dominante versus povo, clarifica mais a nossa compreensão lembrarmos que um estado se constitui a partir de um certo equilíbrio entre os interesses individuais e os interesses coletivos. Em minha opinião é este equilíbrio que está se rompendo de maneira vergonhosa, como sabe qualquer um que acompanhe a rotina indecente de roubos, corrupção descarada e jogadas políticas as mais absurdas, a fim de premiarem com a liberdade e os bilhões que roubam, os aliados políticos destes mesmos que se dizem “governo do povo”. É disso que todos estão se ressentindo. Penso que não vai haver vaia por uma razão muito simples: seja qual for a equipe campeã, se a torcida vaiar a presidente no momento da entrega do troféu, pode ser que os campeões pensem que a vaia é para eles e isto poderá soar como uma grande falta de elegância. Por outro lado, parecerá igualmente uma deselegância a nossa chefe de estado não entregar o troféu aos campeões. Daí que ela não tem saída a não ser ir entregar o troféu e ouvir então a torcida chamá-la pelo nome(para evitar que os campeões pensem errado) e mandá-la para onde já a mandou há uma semana.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Não vai ter Copa

Ultimamente eu não ando de modo algum inspirado a escrever alguma coisa. Não sei se pelo fato de saber com mais clareza ainda que nada do que eu escrevo pode consertar o que não tem conserto, ou se é porque a minha vaidade se cansou afinal deste brinquedo. Em poucas palavras, saco cheio. Mesmo assim, achei por bem escrever algumas linhas a respeito deste evento de gênese aqui em nosso país para lá de discutível, do qual estamos já na véspera.
É costume, na sexta Feira que antecede o Carnaval, o Prefeito subir no palanque da Avenida e, numa cerimônia simbólica, entregar a chave da cidade ao Rei Momo. Trata-se de um ritual de profundo sentido antropológico e uma sensacional metáfora para os psicanalistas. Resumidamente, a partir da entrega da chave, o poder político, por definição repressor, coloca-se de lado para que a cidade seja governada durante quatro dias por Momo, o Rei da alegria, ou Baco, se preferirem. Não faz muito tempo, aconteceu aqui, em escala macro, algo muitíssimo parecido, embora sinistramente inverso: o governo brasileiro entregou a chave do país a uma organização privada(nos dois sentidos da palavra), a saber: a FIFA, pondo-se à parte e assim anulando-se em todas as esferas para que esta determinasse o que, quando e como tudo deveria ser levado a efeito para que a Copa do Mundo acontecesse aqui, não importando a que preço. Em todos os anos que venho acompanhando as copas do mundo, sem ser necessariamente um entendedor ou mesmo um apaixonado por futebol, posso dizer que assisti a pelo menos uma cuja motivação foi descaradamente política: a copa de 1978, numa Argentina sob o jugo de uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina, cuja realização contou evidentemente com a obscena conivência da FIFA, a qual mostrou assim a natureza de suas operações e a mentalidade dos seus dirigentes. Esta copa, que deve acontecer dentro de algumas horas, promete superá-la e já vem dando provas disso há algum tempo. Falcatruas à parte, eu ressalto aqui a intenção explícita de excluir o povo desta festa, como vem acontecendo, aliás, há muitos anos com o Carnaval. Prova disto é a extinção da geral dos estádios. Outro detalhe importante são as proibições relativas à liberdade de expressão dentro e fora dos estádios, como se esta organização senil quisesse transformar cada estádio em um teatro europeu lotado de burgueses. Os protestos estão proibidos e serão reprimidos exemplarmente. Mas, mesmo não querendo colocar aqui a minha opinião de que a melhor maneira de protestar contra essa quadrilha que tomou conta de nosso país em todos os escalões(agora refiro-me à nossa subclasse política) seja a população negar-se a votar nas próximas eleições, penso que deveria haver um protesto sim, pela liberdade de expressarmos a nossa alegria da maneira como queremos. Vai haver sim uma competição de futebol de âmbito mundial aqui no Brasil, mas não vai ter copa. Não da forma como um brasileito entende o que é Copa do mundo. Lembrei de João Bosco e sua “Plataforma”, tão oportuna neste momento, a qual transcrevo abaixo e que deveria ser enviada por carta às múmias da FIFA:

Plataforma
João Bosco

Não põe corda no meu bloco
Nem vem com teu carro-chefe
Não dá ordem ao pessoal
Não traz lema nem divisa
Que a gente não precisa
Que organizem nosso carnaval

Não sou candidato a nada
Meu negócio é madrugada
Mas meu coração não se conforma
O meu peito é do contra
E por isso mete bronca
Neste samba plataforma

Por um bloco
Que derrube esse coreto
Por passistas à vontade
Que não dancem o minueto
Por um bloco
Sem bandeira ou fingimento
Que balance e abagunce
O desfile e o julgamento

Por um bloco que aumente
O movimento
Que sacuda e arrebente
o cordão de isolamento
Não põe no meu...

quarta-feira, 26 de março de 2014

Filosofando XLIX

Tudo o que você fizer, faça-o com tesão. Caso contrário, não o faça. Aliás, tente lembrar-se disso na próxima vez em que pensar em fazer sexo.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Ironia VI

- Você tem um namorado?
Ela olhou para o lado e deu um sorrisinho:
- Tenho.
- Você não entendeu a minha pergunta. Vou repetir: você tem um namorado?
- Tenho, Doutor. Ele é lá da faculdade, mora no Méier, estamos juntos há seis meses e eu gosto dele.
- Você não entendeu a minha pergunta. Mais uma vez: você tem um namorado?
Ela então se impacientou, e fez uma carinha linda de desespero:
- Ah, Doutor, desisto. Não estou entendendo mais nada.
- Ok, então. Vou reformular a minha pergunta: ele tem você?
Ela ficou calada por uns instantes enquanto olhava para fora da janela.
- Hum...não sei...acho que não, Doutor.
- Então, você não tem um namorado...

quinta-feira, 13 de março de 2014

Para além do mundo dos sonhos III

“Imagine que você foi dormir e teve um sonho que não terminava nunca. Como você saberia que era um sonho?”(Bennett).

Era uma daquelas velhinhas super simpáticas com quem volta e meia nos deparamos por aí. Daquelas que adoram conversar e contar um bom caso, e que trazem sempre na bolsa umas balas ou doces que compram dos meninos pobres na rua, para ajudá-los. Saltou do elevador e, logo à direita, ao lado do consultório dentário, estava a sala 512, com a plaquinha na porta, que dizia: “Doutor Fulano de tal - Psicólogo. Entre sem bater”. Ela entrou e, depois de conversar com a secretária, entrou no consultório. Fechou a porta e sentou-se já com um sorriso no rosto.
- Bem, o quê traz a senhora aqui?
- É que eu não consigo dormir, doutor.
- Alguma coisa está lhe preocupando?
- Sim, e muito.
- E a senhora pode me dizer o que é?
- O que me preocupa é que eu não durmo, doutor.
- É complicado e engraçado ao mesmo tempo - ele tinha a mania de arrastar a parte de trás da caneta na mesa enquanto falava, como se estivesse desenhando - A senhora está preocupada porque não dorme, e não dorme porque está preocupada.
- O senhor não entendeu - e ela então ofereceu uma bananada que tirou da bolsa e ele aceitou, mas deixou sobre a mesa – Já faz dois anos que eu não durmo nem de dia e nem de noite. Nem um só minuto.
- Mas a senhora não está com a cara e nem com o ânimo de quem não dorme há dois anos. Eu já fiquei dois dias sem dormir e tive até umas alucinações bem bizarras. Tem certeza do que está dizendo?
- Sim, doutor – e ela então tirou da bolsa e lhe entregou dois laudos médicos, um de uma junta de neurologistas que a haviam examinado e outro de um psiquiatra.
- Confesso que estou impressionado. Nunca vi nada igual em todos esses anos de consultório. Me conte então como isto aconteceu – e colocou os laudos em cima da mesa e, por cima deles, a bananada.
- Há dois anos e uns meses o meu único filho foi internado num hospital. Lá os médicos descobriram que ele tinha uma doença incurável e que não tinha muito tempo de vida.
- Hum...
- Então, já que ele ia morrer, eu quis ficar na cabeceira dele até o último instante e os médicos permitiram que eu ficasse na enfermaria dele. Eu rezava muito, mas todos os dias eu achava que ele ia morrer e eu não queria que ele morresse enquanto eu dormia, sem poder dar o último adeus a ele. Depois de uns dias os médicos começaram a estranhar que eu não dormia. Me deram então uns sedativos, mas mesmo assim eu não dormia. Até que um dia o meu filho veio a falecer. Desde então eu não dormi mais. Os neurologistas do próprio hospital me examinaram e depois me encaminharam para o psiquiatra, para que ele me receitasse uma medicação. Eu comprava caixas e mais caixas do remédio para dormir, mas o máximo que acontecia era eu sair grogue pela rua, como uma louca, sem rumo, até que um vizinho ou a polícia me encontrava e me levava para a minha casa. Então parei de usar o remédio e tenho vivido assim, como o senhor está vendo.
- Bem, e o quê faz a senhora acreditar que eu lhe possa ser útil?
- É que eu vi no anúncio do jornal que o senhor faz hipnose também, e então eu achei que não custava nada tentar.
- Certo. Pode ser que funcione, mas não lhe dou esperança alguma e nem será para hoje. Talvez numa das próximas sessões. Por hoje, vamos apenas conversar.
Iniciaram então uma conversa animada, que se estendeu por quase duas horas. Por fim, ela saiu, prometendo voltar na semana seguinte. Foi para casa pensando e estranhando o modo incomum daquele psicólogo falar pois, apenas conversando sobre coisas banais, deixou em sua mente uma forte convicção, quase uma ordem, para que ela dormisse. Ela sentiu que não conseguiria, mesmo que tentasse, desobedecer. Na manhã seguinte, abriu os olhos e sentia-se estranhamente feliz, com a sensação de que havia dormido, mas não sabia se apenas por uns minutos, uma hora ou dez. Era aniversário de dois anos da morte do seu filho. Arrumou-se e foi à floricultura comprar algumas flores para levar ao túmulo do filho, mas lembrou que havia deixado os laudos no consultório. Resolveu então passar lá primeiro e, depois, fazer o resto. Saltou do elevador no quinto andar e foi direto à sala do psicólogo, mas estranhou que a placa não estava mais na porta, e nem o tapete com a frase “Seja bem vindo”. Tentou abrir a porta, mas não conseguiu. Bateu umas três vezes sem sucesso. Entrou então no consultório dentário e perguntou à secretária, que lhe informou que não havia nenhum consultório psicológico na sala ao lado e que seria melhor ela se informar na portaria. Ela desceu e foi perguntar ao recepcionista. A resposta foi algo de tremendamente desconcertante: havia, realmente, o consultório de um psicólogo ali no quinto andar, o qual fora fechado dois anos antes por motivo de falecimento do dono, o psicólogo. Agora mesmo é que ela não sabia mais se estava desperta ou sonhando... Saiu pela rua e, já próximo à floricultura, foi abordada por um menino:
- Senhora, pode comprar umas bananadas para me ajudar?

quinta-feira, 6 de março de 2014

Filosofando XLVIII

Se os seus pais e professores lhe ensinaram o que pensar e não como pensar, então você é apenas quase bom ou quase mau. E ser quase é quase nada.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Manifestações, violência e Governo.

Quem tem acompanhado a história do século passado e deste, sabe que as guerras modernas são sobretudo guerras midiáticas. Em outras palavras: aquele que tiver e que naturalmente souber utilizar a melhor estratégia de propaganda ganha a opinião pública mundial e vence a guerra, muitas vezes com pouquíssimas baixas para ambos os lados. Muito bem. Penso que este show de incompetência e irracionalidade que temos presenciado no Rio de Janeiro e em outras cidades nada mais é do que uma imitação bizarra em escala micro de algumas práticas que os Americanos têm levado a efeito nas últimas décadas ao redor do mundo. Cabe aqui uma frase interessante, cuja autoria eu desconheço, e que exprime com perfeição a sua maneira de pensar e agir: "Se você quer que alguém lhe dê algo e este alguém se recusa a lhe dar, transforme-o em seu inimigo e tome dele à força". Sensacional. O script das suas empreitadas, com algumas eventuais modificações é simplificadamente este: eleger, e por razões bem diferentes das que a maioria imagina, um inimigo; praticar o terrorismo, acusar o inimigo destas mesmas práticas terroristas e, com isto, justificar o seu próprio terrorismo e ganhar justificativa legal e respaldo da opinião pública para mais terrorismo ainda. É nada menos do que o que está se dando neste momento entre os governos estadual e municipal de um lado e a população, incomodada com a orgia descarada promovida com o dinheiro público, do outro. Não há inocência alguma em qualquer dos dois lados e eu explico: não é um rosto ou vários, cobertos ou não com máscaras, que devem vir para a frente das câmeras, mas uma causa e uma intenção muito bem definidas. Nisto, as manifestações ocorridas no país em meados de 2013 deram um belo exemplo, a despeito dos comentários via de regra imbecis de palpiteiros do porte de Arnaldo Jabor, por exemplo. Do lado do governo, o seu pecado é a recusa obstinada em estabelecer um canal de comunicação direta e franca(se é que isto é possível da parte do mesmo) com a população. O modelo teórico Comunicacional do Double Bind, destinado a explicar a mecânica da esquizofrenia, oferece uma boa alternativa para interpretarmos satisfatoriamente este processo: em primeiro lugar, a via de comunicação da população para com o governo é o voto no médium que, pelo menos no seu discurso eleitoreiro, é portador de sua mensagem, ou seja, suas aspirações e necessidades. Ao perceber o absoluto desprezo com que tanto o seu médium quanto o governo tratam a sua mensagem, o povo então resolve meta-comunicar(comunicar sobre a comunicação) através das manifestações de rua. A violência policial é a maneira privilegiada do governo de tornar impossível a meta-comunicação e dar redundância a um discurso no qual nem mesmo eles próprios, os governantes, acreditam, pois têm perfeita consciência de que estão mentindo o tempo inteiro. E o preço disto pode sair bem alto. Não me refiro às urnas, haja vista a amnésia crônica do povo somada a uma legislação eleitoral que faz com que o processo sempre desague em uma vitrine(ou latrina, se preferirem), cheia de candidatos onde não é possível sequer eleger o menos pior. Dito de outro modo, seja qual for a escolha, esta será sempre necessariamente nociva aos interesses da população. Mais trágico ainda é não se poder dar a descarga...Refiro-me, sim, a um problema crônico que assola este país desde tempos imemoriais: a pessoa errada, no lugar errado. Todo governo que não quer ter grandes problemas deve ter um departamento de comunicação formado por especialistas e não por parentes, conhecidos ou colegas de partido. A meu ver, este é o grande pecado e é de onde saem ideias esdrúxulas como a de imitar, sem a competência necessária, técnicas utilizadas por países que levam o que fazem, para o bem ou para o mal, muitíssimo a sério. Quanto aos manifestantes, enquanto agirem como mariposas, fascinadas pela luz das câmeras, ou pelo brilho do ouro de tolo dos políticos, não terão coisa alguma além do que já têm tido: quinze minutos de fama para alguns espertos e, para o geral, o cala-boca de sempre.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Simples assim...

- Na sua opinião, o quê é Deus?
- Ora, sei lá...eu sou um psicólogo e não um teólogo...
- Certo, mas qual a sua opinião?
- E por quê quer saber? Por acaso está pretendendo ter um encontro com ele?
- Não. Só responda.
- Ok, então. Como psicólogo, eu diria talvez que ele é o que você achar que ele seja, mas prepare-se, porque vai haver um monte de gente discordando de você.
- Concordo inteiramente, mas você não respondeu...
- Bem, eu diria então que ele é um brincalhão, e que neste exato instante está me fazendo uma pergunta cuja resposta ele conhece muito bem...

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Ironia V

Você vive dizendo por aí que homem não presta, que é tudo galinha e mentiroso, etc...mas se a namorada do seu filho vier dizer isso dele, você vai chamá-la de piranha, recalcada, vadia e vai dizer que quem não presta é ela.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Para além do mundo dos sonhos II

"Se a realidade, a vida que você leva, os seus projetos, as coisas que você tem, as pessoas que você conhece, enfim, se tudo isso fosse um sonho, como você o interpretaria?"(Bennett)
- ...Pois é, cara, como eu estava te contando, a minha mãe vivia dizendo que eu era um eleito...não sei de onde ela tirou isso. Maluquice de crente.
- E, naturalmente, nessa tal eleição ela foi presidente da mesa...e como presidente, o voto dela tinha peso dois, não é isso?
- (risos)Acho que é mais ou menos por aí...
- E como o voto é secreto, todos os outros eleitores estavam invisíveis...
- (mais risos) Eu nunca acreditei nessa conversa pra boi dormir. Sempre fiz tudo para provar exatamente o contrário. Não quero ser escolhido de porra nenhuma. Um dos caras que eu mais admiro é Casanova, e eu Comecei a admirá-lo quando ele disse: "Eu não troco um minuto sequer da minha vida pela eternidade no paraíso". Achei fantástico. Você já leu a biografia de Casanova?
- Não.
- Mas deixa eu te contar. Um dia desses eu acordei pensando muito nisso. Muito mesmo. Acho que tive um sonho, não me lembro, mas isso não me saiu da cabeça o dia inteiro...
- Isso o quê?
- Porra, essa coisa de ser um escolhido de Deus. Então, pensei cá comigo: "Porra, se eu sou um escolhido de Deus, por quê ele não me escolhe pra ganhar na loteria e sair dessa penúria crônica que me assola a vida toda?
- Boa pergunta...Pelo jeito, Deus tem um modo meio bizarro de tratar os seus escolhidos, ou então é um sacana de carteirinha.
- Porra, esse paraíba foi fabricar a nossa cerveja, cara?
- Tem razão - Ô paraíba!...Ô paraíba! Cadê a porra da nossa cerveja?
- Então, cara, era um sábado de manhã, nada pra fazer, e eu resolvi perambular por Copacabana. Cheguei a passar em frente a uma lotérica e tinha algo me dizendo pra jogar, mas eu não quis. Tem que ser muito cagão pra acertar num jogo em que as suas chances são de uma para nem sei quantos milhões. A praia estava lotada, Um verdadeiro formigueiro humano. A areia, o calçadão, tudo cheio de gente. Então, procurei um banquinho do lado de cá da Atlântica, embaixo de uma árvore, e fiquei ali olhando as bundas que passavam. Acendi um cigarro e fui fumando e pensando nessa porra toda. No final, joguei a ponta do cigarro no chão e imediatamente, não sei de onde, apareceu um fiscal da prefeitura.
- E aí?
- Ele veio, pegou a ponta do chão, colocou num saquinho plástico e me tascou uma multa de cento e cinquenta e sete pratas. Porra, no meio de um milhão de pessoas, aquele filho da puta me escolheu pra multar...e por causa de uma ponta de cigarro.
- Acho que você devia ter jogado na loteria...ou então Deus não gosta que os escolhidos dele fumem...


(Jan Robba em: "O livro das esquisitices")

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Rumo ao céu

Rumo ao céu


Qual misterioso véu
cravejado de brilhantes,
dos mais finos diamantes.
Nele, envolto, o nosso mundo.
É pois o pano de fundo
neste palco teatral.
Cegos, insanos, insones,
construímos cada qual
sua torre de Babel
alucinado papel
loucos, representamos.
Profundos fossos cavamos
tentando galgar o céu...

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Filosofando XLVII

O que há de mais mágico quando o amor acontece não é, afinal, o poder que ele tem de quebrar a nossa rotina? Devemos então ter cuidado para que o próprio amor não se transforme em rotina, porque a rotina é o leito macio onde agoniza e morre qualquer amor.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Sem saída

- Você se considera um sujeito honesto?
- Sim, Doutor, eu sempre fui honesto... - e ele então terminou de tirar um pequeno cisco do seu tergal preto, impecavelmente engomado.
- hum...
- Pago minhas contas religiosamente em dia, honro minha palavra e os meus compromissos, sou fiel à minha mulher...Meu pai me ensinou a ser honesto em tudo.
- E aposto como era ele mesmo quem o obrigava a abraçar, beijar ou pedir a bênção a pessoas que você detestava, tipo aquele tio chato que você não ia com a cara, não é verdade? Eu desconfio de pessoas muito honestas...
- Por quê a desconfiança?
- Ora, porque é impossível um sujeito ser totalmente honesto, e principalmente para consigo próprio. Nós já aprendemos a ser safados bem cedo. Você acha que eu estou sendo honesto com você?
- Acho que sim.
- No entanto, eu cobro de você, e quem tem que fazer o trabalho sujo é você mesmo...Isso é honesto?
- ...
- Conhece o jogo de xadrez?
- Joguei umas partidas, quando era mais novo. Acho que jogava bem.
- Já experimentou jogar uma partida contra si mesmo?
- Não, Doutor.
- Se tivesse jogado, saberia que é impossível ganhar de si mesmo sem trapacear no jogo. Isso porque você, lá do outro lado do tabuleiro, sabe tudo o que você, do lado de cá, está pensando, suas intenções, planos, etc...E o quê é essa sua desordem? Pura Trapaça...
- Não entendi.
- Todo esse monte de sintomas aí que você apresenta, tipo mania de arrumação, de limpeza, essa sua questão com o tempo e com o dinheiro, enfim, até mesmo essa sua honestidade, tudo isso faz parte de algo cuja perpetuação só é possível se você trapacear contra si mesmo. E a trapaça já começou quando você veio aqui buscar uma terapia, alegando que não consegue se relacionar com as pessoas. Mas lá no fundo, você sabe que não é nada disso. E a maior prova de que você é um trapaceiro você vai me dar aqui nessa terapia. Duvida?
- Como assim?
- Na realidade, você está prestes a jogar uma partida de xadrez contra si mesmo, e eu aposto como você vai trapacear ou vai derrubar as peças todas no tabuleiro e vai embora, o que não deixa de ser uma trapaça.
- E você então, onde entra nisso?
- É simples. Eu sou você do outro lado do tabuleiro.
- Então eu estou pagando para jogar uma partida que não vai terminar nunca?
- Só se você for honesto. A propósito, quanto em dinheiro você acha que vale essa sua neurose?
- Ora, que absurdo. Vale nada, zero.
- Eu diria que, pela tremenda obstinação com que você se apega a ela e a defende com unhas e dentes, deveria valer uma fortuna. Diga um valor.
- Nenhum, Doutor - ele então remexeu-se na cadeira, olhou para o relógio(talvez já pela quinta vez em trinta minutos) e começou a limpar os óculos - nada mesmo.
- E se eu quisesse comprar todos os seus sintomas?
- Que loucura é essa, Doutor?
- Isso mesmo: eu quero comprar os seus sintomas.
- Isso é uma brincadeira?
- Não. É um jogo, como eu lhe falei. Diga o valor.
- Nenhum, Doutor...
O Psicólogo então lhe estendeu duas notas de cem reais, que somavam o mesmo valor daquela consulta.
- Tome. É seu. Ou você aceita, ou vai procurar outro psicólogo.
Ele olhou nos olhos do psicólogo e então pegou as duas notas. Aquilo soava como uma loucura, mas achou que, afinal, não era um mau negócio. "Tem louco pra tudo" - pensou.
- Fechado, então? - e o psicólogo estendeu a mão para um aperto que selaria toda a negociação.
- Se o senhor quer assim, fechado, doutor - e guardou as notas perfeitamente dobradas na carteira.
- Só tem uma coisa: a partir de agora, seus sintomas me pertencem, e você não poderá fazer uso deles em hipótese alguma, nem aqui e nem em lugar algum. Caso contrário, estará me roubando. Você vai ver também que o que eu paguei pela sua neurose foi uma ninharia. Confio em você...


(Jan Robba em: "O livro das esquisitices")

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O médium é a mensagem

"Meu senhor, eu deploro ser portador de tão más notícias..." E o mensageiro sabia que estava perdido...Conta-se que na Roma antiga, um mensageiro que trouxesse ao rei uma notícia ruim era imediatamente executado, pois ele mesmo era considerado parte da desgraça que vinha anunciar. O mensageiro esperto, que dava algum valor ao próprio pescoço, fugia no caminho, ou teria que inventar uma boa mentira para contar. Ainda não haviam inventado o "politicamente correto", de forma que este pudesse dizer, por exemplo: "Meu senhor, o Rei Fulano de tal, com quem Vossa Majestade tem uma diferença de opinião, manda informar que já se encontra a caminho e manifestou o forte desejo de promover o vosso encontro com Deus na glória eterna" e talvez com isso livrar seu pescoço. McLuhan dizia com muita propriedade:"O meio é a mensagem". Ora, se para ser convincente aquele que fala tem necessariamente que usar a expressão facial e corporal condizentes, então faz sentido afirmar que aquele que dá uma notícia boa ou ruim, como no caso do desafortunado mensageiro acima, é em alguma medida parte do que ele está narrando. Sabe-se que entre as muitas funções de uma mensagem, e talvez a mais importante nos dias de hoje, está a de lisonjear o ego do seu portador, fazendo-o parecer inteligente, original, engraçado, etc. E hoje, em meio a esta verdadeira obssessão por visibilidade, evidentemente amplificada pelo uso das redes sociais, um sujeito pode, em nome dela, nem sequer dar-se o luxo de refletir por alguns instantes no que está veiculando. Apenas a título de exemplo, por estes dias encontrei a seguinte pérola em uma rede social: "A mulher não se vinga; ela apenas faz o que aprendeu com os homens". Sem dúvida, um argumento desprovido de qualquer vestígio de verdade prática e, por isto, muito facilmente refutável. Talvez(ou com certeza)a moça que publicou tal insanidade nem sequer parou para lembrar que, com exceção dos assuntos profissionais ou acadêmicos, uma mulher raramente pede conselhos a um homem. Na verdade, ela vai pedir conselhos à mãe ou às amigas. Então, como pode afirmar que aprendeu a ser idiota com os homens? Mas, quando se trata de tornar-se visível, a verdade do conteúdo ou a coerência do discurso importam muito pouco.Vamos recorrer a um conceito caro para nós, do meio comunicacional, a fim de entendermos melhor o fenômeno: o conceito de Médium. Médium é palavra latina que significa "meio", bem ao modo como McLuhan o coloca. Daí a palavra da moda nos dias de hoje, "Mídia", que é o seu plural. É bem neste sentido que cada ser humano é um médium, ou seja: um ser que está o tempo todo veiculando opiniões, saberes, valores, etc, que o atravessam continuamente, tanto vertical como horizontalmente e no fim é essa a razão de a cultura existir e se perpetuar. Por conta da sedução que exerce aquela estranha função da mensagem, a qual citei acima, é que uma pessoa entra em uma rede social para postar ou, na maioria das vezes, apenas retransmitir o que quer que seja que, com isto, o faça parecer inteligente, original, engraçado, etc aos olhos dos outros. Então vem a parte trágica da história: assim como num centro espírita a perfeição com que um médium "incorpora" um espírito está na proporção inversa da consciência que ele tem de si mesmo naquele instante, aquele que veicula mensagens em redes sociais(que é o nosso caso aqui) tem que estar também inconsciente de si próprio num grau maior ou menor. Dito de um outro modo, quanto mais inconsciente de si mesmo estiver o médium, mais perfeitamente ele incorpora os valores da sua cultura. É no rastro das novas Tecnologias da informação que o modelo emissor/receptor, assim como a linearidade em comunicação já não se mostram suficientes, tendo que forçosamente dar lugar aos conceitos de médium e expansão viral e, assim, hoje mais do que nunca, a máxima de McLuhan se mostra verdadeira: O médium é a mensagem.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Para além do mundo dos sonhos

"Se a realidade, a vida que você leva, os seus projetos, as coisas que você tem, as pessoas que você conhece, enfim, se tudo isso fosse um sonho, como você o interpretaria?". Com esta pergunta instigante, L.F. Bennett encerrava o penúltimo capítulo do seu perturbador "O mundo dos sonhos". Ele fechou o livro e olhou pela janela do ônibus a multidão de carros e pessoas e pensou em como era louco aquilo tudo. Seu ponto era o próximo. Saltou, atravessou a Rio Branco e ganhou a Sete de Setembro, para mais um dia da sua vida de siri que, na realidade, era a vida que gostava de levar. Achava obsceno alguém ficar preso em um escritório criando barriga, renunciando ao próprio cérebro e juntando dinheiro para casar com uma mulher que anos depois se transformaria numa gorda histérica e que certamente iria ficar com a metade do que ele tivesse conseguido, caso decidisse abandoná-la. Amava a liberdade. Conhecia cada rua do Centro, cada botequim, cada puteiro, cada banca de jogo do bicho, cada camelô onde se podia trocar vales-refeição por dinheiro. Era uma radiante manhã de verão e ele imaginou como seria ótimo poder perambular por Copacabana, andar no meio daquela gente bonita e simplesmente olhar aquele mar imenso. Passou o dia entregando documentos ali mesmo pelo centro da cidade até as cinco e pouco da tarde quando, voltando ao escritório, sua chefe lhe deu uma última tarefa:
- Siri, tem ainda este cheque aqui, que você tem que entregar em Copacabana. Descansa um pouco e vai. Na volta, não precisa nem passar aqui. Vá direto pra casa, que eu bato o seu cartão de ponto com uma hora extra.
Ele pegou o envelope branco e olhou o boleto grampeado por fora. Não conseguia imaginar como alguém podia ter tanto dinheiro. Tentou calcular quantos anos precisaria trabalhar para juntar tudo aquilo. Talvez uma vida inteira não fosse suficiente. "Cento e cinquenta milhões é uma quantia astronômica", pensou. Colocou o envelope dentro do livro e foi. Lembrou que estava louco de vontade de fumar e não tinha um centavo, pois perdera tudo num jogo de apostas com uns salafrários na rua. Saltou ali, quase na esquina de Barata Ribeiro com Constante Ramos e em poucos instantes chegou ao apartamento do cliente, na Atlântica. A empregada mandou que entrasse e esperasse uns minutos, que o seu patrão já viria. Ficou boquiaberto com o revestimento de mármore das paredes internas, a mobília que parecia algo do século dezoito, as luminárias, a cristaleira, o oratório que fora de uma igreja barroca de Minas e que ele não conseguia imaginar como fora parar ali. Não parecia de jeito algum com um apartamento, muito menos um apartamento em Copacabana e menos ainda no século vinte. O cliente veio lá de dentro numa cadeira de rodas e ele não deixou de notar, com aquela aversão disfarçada que enfim todos sentem, que o homem não tinha as duas pernas, que pareciam ter sido cortadas bem rente. Entregou o cheque, pediu para que ele assinasse o boleto e já ia saindo, quando o cliente o convidou para se sentar e tomar um café. É uma tortura, e todo bom fumante sabe disso, tomar café quando se está louco de vontade de fumar e sem um mísero trocado no bolso. Tomou o café, conversou um pouco e ia novamente saindo, quando o homem tirou da carteira uma nota de cinquenta e lhe estendeu:
- Tome, é para você fazer um lanche.
- Obrigado, mas eu não posso receber gratificações(ele conhecia bem a malandragem dos gerentes, que volta e meia diziam para algum cliente oferecer uma boa gorjeta com a finalidade de testar a integridade dos office boys).
- Deixe de bobagem. Eu sei o que você está pensando. Pode aceitar. Não vou contar nada para o seu chefe.
- Ok, obrigado então.
Estava salvo. Tinha agora dinheiro suficiente para o cigarro, o almoço e as passagens de uma semana inteira. Saiu feliz pela rua à procura do primeiro bar, quando mais à frente se deparou com um mendigo sentado na calçada com uma cuia ao lado. Automaticamente, e por motivos que jamais conseguiria explicar nem a si mesmo, tirou todo o dinheiro do bolso e o colocou na cuia. Foi somente uns passos adiante que ele se deu conta da enorme burrada que acabara de cometer e então parou e olhou para trás, e o que viu o fez gelar por dentro. Fora os farrapos que estava usando, o cheiro de rato morto e a evidente falta de banho, aquele homem era absurdamente igual ao cliente que acabara de visitar, inclusive pelo desconcertante detalhe de que ele não tinha as duas pernas, que pareciam também ter sido cortadas bem rente ao corpo. Era algo como se fossem dois gêmeos que tivessem sido submetidos ao mesmo experimento macabro, tendo sido amputados pelo mesmo médico. Teve naquele instante a certeza aterradora de que havia sido tocado por algo além da sua compreensão, como se o insondável tivesse aberto uma porta e lhe mostrado sua face. Encostou-se na parede de uma loja e respirou. Sentia sua cabeça agora mais parecida com um liquidificador, onde nada mais podia ser reconhecido como um pensamento seu. Sentia que um nexo estranho e assustador ligava sua vida à daqueles dois naquele momento e que havia um outro sentido, incômodo e fantástico, naquilo tudo, mas num nível muito acima do real. Sabia que era, de longe, o mais feliz dos três, mas algo lhe dizia que, no final, podia ser ele a cobaia de um experimento assustador, e que o mundo talvez não fosse tão óbvio e banal quanto parece...
Olhou mais uma vez e seus olhos encontraram os daquele mendigo, em cujo brilho podia ler como que uma sentença velada: "Eu sei o que você está pensando...".
Tratou de sair logo dali e entrar no primeiro ônibus que apareceu...

(Jan Robba em: "O livro das esquisitices")