- Você se considera um sujeito honesto?
- Sim, Doutor, eu sempre fui honesto... - e ele então terminou de tirar um pequeno cisco do seu tergal preto, impecavelmente engomado.
- hum...
- Pago minhas contas religiosamente em dia, honro minha palavra e os meus compromissos, sou fiel à minha mulher...Meu pai me ensinou a ser honesto em tudo.
- E aposto como era ele mesmo quem o obrigava a abraçar, beijar ou pedir a bênção a pessoas que você detestava, tipo aquele tio chato que você não ia com a cara, não é verdade? Eu desconfio de pessoas muito honestas...
- Por quê a desconfiança?
- Ora, porque é impossível um sujeito ser totalmente honesto, e principalmente para consigo próprio. Nós já aprendemos a ser safados bem cedo. Você acha que eu estou sendo honesto com você?
- Acho que sim.
- No entanto, eu cobro de você, e quem tem que fazer o trabalho sujo é você mesmo...Isso é honesto?
- ...
- Conhece o jogo de xadrez?
- Joguei umas partidas, quando era mais novo. Acho que jogava bem.
- Já experimentou jogar uma partida contra si mesmo?
- Não, Doutor.
- Se tivesse jogado, saberia que é impossível ganhar de si mesmo sem trapacear no jogo. Isso porque você, lá do outro lado do tabuleiro, sabe tudo o que você, do lado de cá, está pensando, suas intenções, planos, etc...E o quê é essa sua desordem? Pura Trapaça...
- Não entendi.
- Todo esse monte de sintomas aí que você apresenta, tipo mania de arrumação, de limpeza, essa sua questão com o tempo e com o dinheiro, enfim, até mesmo essa sua honestidade, tudo isso faz parte de algo cuja perpetuação só é possível se você trapacear contra si mesmo. E a trapaça já começou quando você veio aqui buscar uma terapia, alegando que não consegue se relacionar com as pessoas. Mas lá no fundo, você sabe que não é nada disso. E a maior prova de que você é um trapaceiro você vai me dar aqui nessa terapia. Duvida?
- Como assim?
- Na realidade, você está prestes a jogar uma partida de xadrez contra si mesmo, e eu aposto como você vai trapacear ou vai derrubar as peças todas no tabuleiro e vai embora, o que não deixa de ser uma trapaça.
- E você então, onde entra nisso?
- É simples. Eu sou você do outro lado do tabuleiro.
- Então eu estou pagando para jogar uma partida que não vai terminar nunca?
- Só se você for honesto. A propósito, quanto em dinheiro você acha que vale essa sua neurose?
- Ora, que absurdo. Vale nada, zero.
- Eu diria que, pela tremenda obstinação com que você se apega a ela e a defende com unhas e dentes, deveria valer uma fortuna. Diga um valor.
- Nenhum, Doutor - ele então remexeu-se na cadeira, olhou para o relógio(talvez já pela quinta vez em trinta minutos) e começou a limpar os óculos - nada mesmo.
- E se eu quisesse comprar todos os seus sintomas?
- Que loucura é essa, Doutor?
- Isso mesmo: eu quero comprar os seus sintomas.
- Isso é uma brincadeira?
- Não. É um jogo, como eu lhe falei. Diga o valor.
- Nenhum, Doutor...
O Psicólogo então lhe estendeu duas notas de cem reais, que somavam o mesmo valor daquela consulta.
- Tome. É seu. Ou você aceita, ou vai procurar outro psicólogo.
Ele olhou nos olhos do psicólogo e então pegou as duas notas. Aquilo soava como uma loucura, mas achou que, afinal, não era um mau negócio. "Tem louco pra tudo" - pensou.
- Fechado, então? - e o psicólogo estendeu a mão para um aperto que selaria toda a negociação.
- Se o senhor quer assim, fechado, doutor - e guardou as notas perfeitamente dobradas na carteira.
- Só tem uma coisa: a partir de agora, seus sintomas me pertencem, e você não poderá fazer uso deles em hipótese alguma, nem aqui e nem em lugar algum. Caso contrário, estará me roubando. Você vai ver também que o que eu paguei pela sua neurose foi uma ninharia. Confio em você...
(Jan Robba em: "O livro das esquisitices")
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