"Se a realidade, a vida que você leva, os seus projetos, as coisas que você tem, as pessoas que você conhece, enfim, se tudo isso fosse um sonho, como você o interpretaria?". Com esta pergunta instigante, L.F. Bennett encerrava o penúltimo capítulo do seu perturbador "O mundo dos sonhos". Ele fechou o livro e olhou pela janela do ônibus a multidão de carros e pessoas e pensou em como era louco aquilo tudo. Seu ponto era o próximo. Saltou, atravessou a Rio Branco e ganhou a Sete de Setembro, para mais um dia da sua vida de siri que, na realidade, era a vida que gostava de levar. Achava obsceno alguém ficar preso em um escritório criando barriga, renunciando ao próprio cérebro e juntando dinheiro para casar com uma mulher que anos depois se transformaria numa gorda histérica e que certamente iria ficar com a metade do que ele tivesse conseguido, caso decidisse abandoná-la. Amava a liberdade. Conhecia cada rua do Centro, cada botequim, cada puteiro, cada banca de jogo do bicho, cada camelô onde se podia trocar vales-refeição por dinheiro. Era uma radiante manhã de verão e ele imaginou como seria ótimo poder perambular por Copacabana, andar no meio daquela gente bonita e simplesmente olhar aquele mar imenso. Passou o dia entregando documentos ali mesmo pelo centro da cidade até as cinco e pouco da tarde quando, voltando ao escritório, sua chefe lhe deu uma última tarefa:
- Siri, tem ainda este cheque aqui, que você tem que entregar em Copacabana. Descansa um pouco e vai. Na volta, não precisa nem passar aqui. Vá direto pra casa, que eu bato o seu cartão de ponto com uma hora extra.
Ele pegou o envelope branco e olhou o boleto grampeado por fora. Não conseguia imaginar como alguém podia ter tanto dinheiro. Tentou calcular quantos anos precisaria trabalhar para juntar tudo aquilo. Talvez uma vida inteira não fosse suficiente. "Cento e cinquenta milhões é uma quantia astronômica", pensou. Colocou o envelope dentro do livro e foi. Lembrou que estava louco de vontade de fumar e não tinha um centavo, pois perdera tudo num jogo de apostas com uns salafrários na rua. Saltou ali, quase na esquina de Barata Ribeiro com Constante Ramos e em poucos instantes chegou ao apartamento do cliente, na Atlântica. A empregada mandou que entrasse e esperasse uns minutos, que o seu patrão já viria. Ficou boquiaberto com o revestimento de mármore das paredes internas, a mobília que parecia algo do século dezoito, as luminárias, a cristaleira, o oratório que fora de uma igreja barroca de Minas e que ele não conseguia imaginar como fora parar ali. Não parecia de jeito algum com um apartamento, muito menos um apartamento em Copacabana e menos ainda no século vinte. O cliente veio lá de dentro numa cadeira de rodas e ele não deixou de notar, com aquela aversão disfarçada que enfim todos sentem, que o homem não tinha as duas pernas, que pareciam ter sido cortadas bem rente. Entregou o cheque, pediu para que ele assinasse o boleto e já ia saindo, quando o cliente o convidou para se sentar e tomar um café. É uma tortura, e todo bom fumante sabe disso, tomar café quando se está louco de vontade de fumar e sem um mísero trocado no bolso. Tomou o café, conversou um pouco e ia novamente saindo, quando o homem tirou da carteira uma nota de cinquenta e lhe estendeu:
- Tome, é para você fazer um lanche.
- Obrigado, mas eu não posso receber gratificações(ele conhecia bem a malandragem dos gerentes, que volta e meia diziam para algum cliente oferecer uma boa gorjeta com a finalidade de testar a integridade dos office boys).
- Deixe de bobagem. Eu sei o que você está pensando. Pode aceitar. Não vou contar nada para o seu chefe.
- Ok, obrigado então.
Estava salvo. Tinha agora dinheiro suficiente para o cigarro, o almoço e as passagens de uma semana inteira. Saiu feliz pela rua à procura do primeiro bar, quando mais à frente se deparou com um mendigo sentado na calçada com uma cuia ao lado. Automaticamente, e por motivos que jamais conseguiria explicar nem a si mesmo, tirou todo o dinheiro do bolso e o colocou na cuia. Foi somente uns passos adiante que ele se deu conta da enorme burrada que acabara de cometer e então parou e olhou para trás, e o que viu o fez gelar por dentro. Fora os farrapos que estava usando, o cheiro de rato morto e a evidente falta de banho, aquele homem era absurdamente igual ao cliente que acabara de visitar, inclusive pelo desconcertante detalhe de que ele não tinha as duas pernas, que pareciam também ter sido cortadas bem rente ao corpo. Era algo como se fossem dois gêmeos que tivessem sido submetidos ao mesmo experimento macabro, tendo sido amputados pelo mesmo médico. Teve naquele instante a certeza aterradora de que havia sido tocado por algo além da sua compreensão, como se o insondável tivesse aberto uma porta e lhe mostrado sua face. Encostou-se na parede de uma loja e respirou. Sentia sua cabeça agora mais parecida com um liquidificador, onde nada mais podia ser reconhecido como um pensamento seu. Sentia que um nexo estranho e assustador ligava sua vida à daqueles dois naquele momento e que havia um outro sentido, incômodo e fantástico, naquilo tudo, mas num nível muito acima do real. Sabia que era, de longe, o mais feliz dos três, mas algo lhe dizia que, no final, podia ser ele a cobaia de um experimento assustador, e que o mundo talvez não fosse tão óbvio e banal quanto parece...
Olhou mais uma vez e seus olhos encontraram os daquele mendigo, em cujo brilho podia ler como que uma sentença velada: "Eu sei o que você está pensando...".
Tratou de sair logo dali e entrar no primeiro ônibus que apareceu...
(Jan Robba em: "O livro das esquisitices")
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