segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Amigo...

-O quê houve?
- Nada...- respondeu o menino, já imaginando o que iria acontecer quando chegasse em casa sem o café e sem o dinheiro. Sempre dobrava o dinheiro e prendia entre o elástico do short e a pele, mas era a primeira vez que perdia. Precisava encontrar aquela nota de dois cruzeiros de qualquer jeito, ou iria levar uma surra.
- Como, nada? - O pai, dali mesmo do armazém, tomando a sua cerveja, vira o menino subir e descer a escadaria umas três vezes e vira também a aflição do menino...
- É que eu perdi o dinheiro que a mamãe me deu pra comprar o café...
- E quanto era?
- Eram dois cruzeiros.
- Você deve ter perdido no caminho. Faça o caminho de volta e procure bem. Pode ser que você ache.
Daí a uns instantes volta o menino.
- Então?
- Não encontrei não...- e pela sua cabeça só passava aquele estranho mistério, de como ele podia ser tão azarado. Pensava que, no fim, ele não devia valer muita coisa mesmo, ou talvez Deus estivesse zangado com ele.
- Olha, encontrei o seu dinheiro. Estava bem ali, perto daquela moitinha de capim e você não viu... - e entregou as duas notas de um cruzeiro dobradas ao menino, que agora só iria levar uma bronca por ter demorado.
Muitos anos depois, quando o pai já nem mesmo estava ali para que ele agradecesse foi que, lembrando deste pequeno incidente, ele se deu conta de que não foram duas notas de um, mas uma de dois, que ele havia perdido. Só então foi que ele percebeu tudo...Se a sua vida de altos e baixos era no fundo a procura do amigo que havia perdido, desta vez sabia que não havia ninguém para reparar aquela perda...

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Esther way to heaven

Esther o abandonara. Se há uma coisa essencial em uma mulher, é o bom humor. "Sem bom humor, a mulher é só uma vagina acompanhada de um corpo". Era assim que definia uma mulher. Ele gostava de cantar para ela a música que ela odiava, e que lembrava os maconheiros com quem ele andava ainda nos tempos de namoro:

"And she's buying
Esther way to heaven"

Ela virava bicho. A comida saía salgada demais, ou cheia de gordura, ou queimada.
Esther o deixou e foi viver com um funcionário público, que talvez tivesse hemorróidas. Sua diversão então era embebedar-se e, quando a tarde caía, sacanear o vizinho do quarto andar, antes de sair para a rua e se enfiar em um boteco. Já sabia exatamente a hora em que o tal vizinho(que diziam ser um militar reformado por maluquice) se debruçava na janela, com a cabeça para fora e ficava olhando o tempo. Tempo infinito, o dos solitários... Dali, do sexto, tinha uma visão perfeita da careca dele, bem embaixo. Então, esperava o vizinho se debruçar na janela, mirava bem a careca dele e dava uma cuspida. De lá de baixo só se ouvia:
-Filho da puta! Vai cuspir na mãe!!!
Era divertido ouvir o careca xingar. Muitas vezes, o sentido da vida de um sujeito está em ver o mal estar dos outros mas, muitas outras vezes, o sentido está em termos um diabo no nosso calcanhar. Talvez fosse isso que Freud quisesse dizer com o seu famoso "O mal estar da civilização".
Já eram 5 da tarde. Hora do careca receber seu cuspe sagrado. Ele virou o restinho de Whisky com guaraná que havia no copo e foi para a janela. Dali ele vislumbrou aquela reluzente careca, esperando pelo seu cuspe, como a terra que espera pela chuva, para poder florir. Mirou com cuidado, soltou a cusparada e se escondeu.
De lá de baixo, ouviu de novo:
- Filho da puta! Vai cuspir na mãe!!!
Pegou a carteira, a jaqueta e saiu para a rua...



(Jan Robba em:"O livro das esquisitices")

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Sobre o otimismo


Aquele sujeito era mesmo otimista...Um dia, atravessando um matagal, ele pisou num prego que lhe atravessou o pé e, mesmo sentindo uma dor dos infernos, pensou lá com seus botões:”Puxa, que sorte! Ainda bem que é um prego...Imagine, se fosse um parafuso, onde eu ia arrumar uma chave de fenda para tirar isso do meu pé?”



(Jan Robba em:"O livro das esquisitices")

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Sem saída...

Ele continuava sentado ali no chão, em lótus, olhos vidrados, balançando o corpo bem à maneira de um autista. Era a própria imagem do desespero, da solidão e do desvalimento. Tinha abusado de uma menina de cinco anos de idade, sua enteada, penetrando o ânus da menina, sem se importar se a menina queria ou conseguia suportar aquilo, e agora os traficantes da área já sabiam e estavam atrás dele para fazerem "o que devia ser feito".
- E agora, Doutor, o quê é que eu faço?(como se o Doutor tivesse uma solução mágica...).
- Bem, você pode se entregar à polícia, e assim vai saber como é bom abusar de crianças, pois vai para um presídio, onde será a noiva de alguém. Você pode se entregar aos traficantes, e também vai saber como é bom abusar de crianças, pois eles vão matá-lo. Você pode também tomar a única atitude de homem que lhe resta, isto é, se ainda há alguma coisa de homem em você. Você me entende, não é? Pode ir, porque eu não quero meu consultório invadido por bandidos armados.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Filosofando V

"Bater em um bêbado é covardia; apanhar de um bêbado é humilhação. Escolha um adversário à sua altura"(Jan Robba)

(Jan Robba em:"O livro das esquisitices")

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O Livro de assinaturas

- Não acredito...o Chico...-Murmurou ele para si mesmo, olhando aquele corpo nu, deitado ali, tal qual um colecionador admira extasiado a sua relíquia mais valiosa.
- O Chico tocou esse corpo...Chico autografou esse corpo...
Durante toda a semana, jornais e revistas traziam a foto do Chico, com a mulher dele na praia. Da noite para o dia, tornara-se o corno anônimo mais famoso do país.
- Não, eu não posso...não posso transar com você...fazer isto seria rabiscar o autógrafo do Chico todo...





Este mini-conto é uma homenagem minha a Chico Buarque, um dos maiores comilões deste país que, não por acaso, é um dos meus ídolos.



(Jan Robba em:"O livro das esquisitices")

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Broadcasting

Ele chegou da escola e estava bem chateado. Um dia lindo lá fora, e não podia ir brincar na rua, porque estava de castigo. Seu boletim estava horroroso. Sua mãe estava no banheiro, e ele bateu na porta:
- Mãe...
- O quê é?...
- Nada...
Trocou de roupa e foi sentar-se na soleira da porta dos fundos, olhando as pipas lá no alto, dançando naquele céu azulzinho. Ali bem ao lado, Euvení pelejava com um tanque cheio de roupas. Ele então pegou a lata de 20 litros, que servia para pegar água da cisterna, enfiou na cabeça até o ombro e começou a imitar um rádio. Começou a cantar a música do Timóteo:

"Mamãe
só pra você eu contarei agora
Mamãe
a Euvení tá com a bunda choca"

A irmã reagiu de pronto:
- Olha aqui, guri: não fica implicando porque eu arrebento essa sua fuça, viu?
Ele então começou com o noticiário:
- Atenção, atenção! Saigon Urgente! O presidente Costa e Silva é um filho da puta. Ele, junto com os militares, vai fuder o Brasil(era o que ele ouvia das conversas do pai com os amigos subversivos).
A irmã ficou estarrecida:
- Guri dos infernos! Já não te falei pra não ficar falando essas coisas, que nós podemos ir todos presos? Vai ficar de castigo agora mesmo! Ali, de cara pra parede!
Ele levantou, tirou a lata da cabeça e foi ficar de pé, de cara para o canto da parede. Restava agora esperar pela boa vontade da irmã. Depois de alguns intermináveis minutos, teve uma idéia. Começou novamente a imitar o rádio, com o noticiário:
-Atenção, atenção! Saigon urgente! A Euvení é piranha. Ontem eu vi ela no sofá alisando o pirú do Francisco, quando não tinh...
A irmã, apavorada, o interrompeu imediatamente:
-Menino do céu, não fica falando essas coisas que, se mamãe souber, ela me mata!
- Então me tira do castigo...
- Tá bom, pode ir...





(Jan Robba em:"O livro das esquisitices")

domingo, 9 de janeiro de 2011

Jesus disse...

- Jesus Cristo disse: “Quem não vem pelo amor, vem pela dor”.
- Olha, eu conheço bem a bíblia e posso lhe afirmar com certeza que Jesus Cristo nunca disse isso...
- Mas, se estivesse aqui hoje, ele diria...
- E não está?
- Está, e é por isso que eu estou dizendo...
- Ah, sei...Então, você deve ser um médium...
- Não, médium não.  Essa coisa de médium procede do maligno...do espírito enganador...
- É verdade...



(Jan Robba em:"O livro das esquisitices")

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Amar é...


Faltava apenas uma coisa para ela ser totalmente feliz no seu casamento: gozar com o marido na cama.  Estava apaixonadíssima por ele e queria ser uma esposa perfeita. Uma semana depois, ela estava de volta e parecia ter conseguido tudo o que desejava.
- Então?...
- É, doutor, foi na terça e na quinta feira, nós fizemos e eu consegui...mas tem um problema...
- E qual é?
- É que eu descobri que não gosto daquele cara...Sei lá...aqueles olhos enormes, aquelas pernas tortas, aquela cara de babaca...chega a ser engraçado...



(Jan Robba em:"O livro das esquisitices")

domingo, 2 de janeiro de 2011

Sobre esquinas, musas, etc...

Lembro-me bem daqueles tempos em que ouvíamos nossas músicas num pequeno gravador cassete. Em toda esquina onde adolescentes se reunissem, sempre aparecia um desses e um violão, entre outras coisas...As vitrolas tinham ficado obsoletas e os modulares ainda estavam por vir, para despejar algumas centenas de Watts RMS que fariam o desespero de familiares e vizinhos. Lembro que eu achava muito estranha a minha voz gravada num daqueles aparelhos. Não gostava mesmo. Achava horrível a minha voz. Aliás, achava minhas fotos ruins, assim como as músicas que eu compunha e as coisas que eu escrevia. E assim é até hoje. Penso que, mesmo aqueles que se acham feios, no fundo se acham bonitinhos e a prova disso é a reação de horror ao testemunho indiscutível de um gravador ou máquina fotográfica, etc...É difícil para mim gostar de alguma coisa que eu crio. Dizem que este “rigor” é bom para que o escritor/músico/artista/cientista siga sempre buscando a perfeição. Na verdade, isto tudo é um bocado chato. Principalmente no país do “embrulha e manda”. Mas sei que, amanhã, quando eu puser meus olhos nisto aqui, acharei ridículo. Sei que vou me perguntar o quê o meu leitor pensa quando lê essas coisas(já estou me perguntando). Não conheço pessoalmente um só dos meus(onze) leitores. Escrevo para um leitor genérico, mas genérico não no sentido que os farmacêuticos dão ao termo, mas no sentido que a minha imaginação gostaria que fosse: que, de preferência, discorde da minha opinião com relação àquilo que eu crio. Em outras palavras: um leitor “gente boa”. Uma musa inspiradora, em lugar de um leitor genérico, talvez fosse bom também, mas não preciso de tanto “rigor” assim para saber que a musa de hoje talvez ande atrás de coisa bem diferente. É capaz inclusive de engravidar de um Mick Jagger para conseguir o que quer. Não estou afirmando que ela seja uma negociante que fez do seu corpo moeda de troca. Longe de mim afirmar isto. Até porque ela é um ser etéreo, habitante das alturas do idealismo e eu, um cara que sabe que, para certas coisas, o tempo dos gravadores cassete já se foi...




(Jan Robba em:"O livro das esquisitices")