quinta-feira, 5 de maio de 2011

A mitologia cristã

Há certamente um movimento bem interessante na formação dos mitos e das figuras mitológicas, principalmente no cristianismo. Uma vez, perguntei a uma paciente: "Jesus cagava?", "Nossa senhora menstruava?", "o Papa peida?". Minha paciente ficou horrorizada com aquilo, e era esta a minha intenção, a fim de "sacudir" seus conceitos. Mais adiante, verificamos que se tratava do mesmo processo que se dá com nossos amores, por exemplo. A minha amada não caga, não menstrua, não peida, não tem meleca, etc. Essa "divinização" da pessoa amada chega a um cúmulo em que o amante não consegue fazer sexo com ela. Quando, ao longo do convívio, ele percebe que as coisas não são bem assim como ele imagina, ela deixa de ser uma figura "mitológica" para ele e se torna apenas mais uma mulher. O mito cristão previne contra esta humanização do sagrado. Basta compararmos os quadros de Yemanjá e de Nossa Senhora. Yemanjá aparece sempre com um vestido realçando as formas do corpo, e ainda com um decote delicioso, ao passo que Nossa Senhora aparece vestida até o pescoço, ou seja, completamente assexualizada(ou dessexualizada?).
As diferenças são flagrantes. Entender estas diferenças passa pelo entendimento de cada uma das mitologias. A mitologia cristã, como afirmei lá em cima, nega o humano e funda um corte entre este e o divino, corte que não está em poder do homem desfazer. Daí que o Deus cristão está alhures, em alturas incalculáveis, longe do mundo humano.
A mitologia Afro já parte de um ponto de vista diferente: tudo na Terra é regido por uma divindade, estando Deus acima de todas as coisas em importância, mas não acima em sentido espacial. Não há portanto o corte entre o divino e o humano. Exatamente por isto, temos aí uma deusa Yemanjá esbanjando sensualidade sem por isso tornar-se menos divina.
A este respeito nós temos um conceito chave: enquadramento. Enquadramento significa colocar um determinado fato dentro de um contexto tal, em que este fato possa fazer sentido. O mito tem esta função, assim como a ciência, os contos de fadas, a psicologia e psicanálise. Um paciente entra em parafuso justamente quando ele não encontra sentido em um determinado acontecimento ou um fenômeno em seu íntimo. Por exemplo, as pessoas que não têm uma religião ou a crença em um Deus geralmente lidam com mais dificuldade com a morte.
Um outro exemplo de enquadramento: o travesti em nossa mitologia é um depravado, afeminado, portador de algum defeito genético, ou que teve uma criação errada dos pais, ou um pecador que irá para o inferno, etc, etc, etc
Na mitologia Afro, ele é simplesmente alguém que tem como "guia de frente" uma pombagira, e isto não o enviará de modo algum a um suposto inferno. É coisa própria dele e que ele terá de trabalhar segundo aquela tradição.
Então, este corte entre o divino e o humano, na tradição cristã, bem pode ser o motivo da eterna culpa de que sofrem os seus adeptos.

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